quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O Eremita da Ervilha




O tempo tem sido escasso para poder escrever um pouco. De repente vi-me em braços com dois empregos, mais o regresso tão esperado à escola. Só que hoje, na sua crónica diária na Antena 1, 'Pano para mangas', João Gobern trouxe um tema interessante, que acho que deve ser mais divulgado!
Não é a primeira vez que tenho dois empregos ao mesmo tempo. Há uns quatro anos atrás trabalhava como estafeta numa pizzaria no Porto, ao mesmo tempo que era operador fabril a turnos rotativos numa empresa da Trofa. A vida era puxada e as refeições, quando existiam, eram de qualidade suspeita e a horas que não lembram ao diabo (do género tomar o pequeno almoço às 4 da tarde, ou jantar às 4 da manhã...). Algumas delas foram feitas entre entregas. Umas sandes daquelas que, chegados aos 40 anos, nos forçam a beber iogurtes-medicamento, tipo Actimel com bifidus activus ou aloe vera. A verdade é que ao fim de 2 anos qualquer coisa que não fosse pizza servia para desenjoar, de maneira que, quando calhava uma entrega ali para a zona do Liceu Garcia de Orta / Av. Antunes Guimarães, era prática habitual parar no Pingo Doce da Praça D. Afonso V, e comprar a matéria prima para mais um jantar-toca-a-subir-o-colesterol (se eventualmente um cliente vier a ler isto, esteja descansado que era sempre no regresso à pizzaria, sou muito profissional nesta arte de estafeta, ainh...!).
Certo dia, neste mesmo estabelecimento daquele supermercado holandês – que de resto ouvi dizer que melhorou substancialmente a sua prateleira de chás e ervas naturais – um homem tenta sair com um shampoo e um polvo sem pagar, mas é parado pelo segurança e a sua tentativa de furto não passa disso mesmo. Até aqui tudo normal, o homem obviamente devolve a fortuna de 25,66€ que valiam os produtos, e acaba sem a sua refeição e com uma ou duas rastas novas. Mas para os holandeses isto é demasiado grave para ser ignorado. Visto ter sido provado que o material (quase) roubado não servia para satisfazer necessidades básicas, o mesmo supermercado que vende leite abaixo do preço de custo, prática ilegal, para quem não saiba, não desiste da acusação apresentada ao Ministério Público, sob o argumento que, e passo a citar, «quem tem um negócio de portas abertas ao público, como é o caso, está particularmente vulnerável ao pequeno furto e não pode deixar de agir, sob pena de dar sinais errados à comunidade».
O homem incorre numa pena não superior a cinco anos de prisão, que será, ao que parece, substituída por trabalho comunitário (ou pelo pagamento de 250€ - o polvo está caro e o shampoo era dum professor qualquer com assinatura pomposa e cabelo à Richard Gear). Mas há um problema... ninguém sabe como notificar o arguido! E porquê...!? Não, não fugiu para o Brasil. Não, não é primo do Vale e Azevedo... simplesmente não tem morada! A última vez que foi visto ocupava um prédio abandonado, mas pode muito bem ter sido estadia de apenas uma noite, visto tratar-se nada mais nada menos que de um sem abrigo. Sim, perceberam bem, o sinal correcto a dar à comunidade é encher os tribunais com casos de pessoas na miséria que tentam roubar comida... e shampoo.
Ao ouvir Gobern na sua crónica lembrei-me dum senhor que vagueava muito aquela zona. Obviamente não sei se é dele que se trata, mas como era habitual ele ir tratar da sua higiene diária ali ao Lavadouro da Ervilha, junto à Praça do Império, e como o pobre coitado foi apanhado com um shampoo, talvez seja mesmo o Eremita da Ervilha, como eu o costumava nomear de cada vez que me imaginava a escrever sobre tão mítica figura local, detentora das mais variadas e tresloucadas lendas urbanas – havia quem dissesse que ele era podre de rico, mas queria viver na rua. Haviam os mais românticos que apontavam para desgosto de amor... eu sempre preferi não saber a verdade, dava-lhe um certo estatuto aqui no meu imaginário.
Cheguei a dar-lhe algumas moedas provenientes das gorjetas angariadas nas corridas-margaritas, precisamente no parque de estacionamento em frente a este Pingo Doce, numa ou outra odisseia de troce-destroce, daí achar que pode mesmo tratar-se do Eremita da Ervilha. Seja como for, sendo ele ou não, dá-me quase um desejo que consigam notificar o homem. E que não substituam a pena por trabalho comunitário (a menos que seja numa caixa do Pingo Doce...). É que se prenderem o Eremita durante uns tempos fica o prémio de consolação de saber que parte da TSU do grupo Jerónimo Martins será aplicada para dar um tecto e refeições quentes e diárias ao sem abrigo. É possível que o Lavadouro da Ervilha seja mais aprazível que os balneários de Custóias, mas pelo menos não terá que roubar shampoo durante uns tempos.

Ao grupo, e pela segunda vez neste recém nascido blogue: shame on you!

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