O tempo tem sido escasso
para poder escrever um pouco. De repente vi-me em braços com dois
empregos, mais o regresso tão esperado à escola. Só que hoje, na
sua crónica diária na Antena 1, 'Pano para mangas', João Gobern
trouxe um tema interessante, que acho que deve ser mais divulgado!
Não é a primeira vez
que tenho dois empregos ao mesmo tempo. Há uns quatro anos atrás
trabalhava como estafeta numa pizzaria no Porto, ao mesmo tempo que
era operador fabril a turnos rotativos numa empresa da Trofa. A vida
era puxada e as refeições, quando existiam, eram de qualidade
suspeita e a horas que não lembram ao diabo (do género tomar o
pequeno almoço às 4 da tarde, ou jantar às 4 da manhã...).
Algumas delas foram feitas entre entregas. Umas sandes daquelas que,
chegados aos 40 anos, nos forçam a beber iogurtes-medicamento, tipo
Actimel com bifidus activus ou aloe vera. A verdade é que ao fim de
2 anos qualquer coisa que não fosse pizza servia para desenjoar, de
maneira que, quando calhava uma entrega ali para a zona do Liceu
Garcia de Orta / Av. Antunes Guimarães, era prática habitual parar
no Pingo Doce da Praça D. Afonso V, e comprar a matéria prima para
mais um jantar-toca-a-subir-o-colesterol (se eventualmente um cliente
vier a ler isto, esteja descansado que era sempre no regresso à
pizzaria, sou muito profissional nesta arte de estafeta, ainh...!).
Certo dia, neste mesmo
estabelecimento daquele supermercado holandês – que de resto ouvi
dizer que melhorou substancialmente a sua prateleira de chás e ervas naturais – um homem tenta sair com um shampoo e um polvo sem pagar,
mas é parado pelo segurança e a sua tentativa de furto não passa
disso mesmo. Até aqui tudo normal, o homem obviamente devolve a
fortuna de 25,66€ que valiam os produtos, e acaba sem a sua
refeição e com uma ou duas rastas novas. Mas para os holandeses isto é demasiado grave para ser ignorado. Visto ter sido provado que
o material (quase) roubado não servia para satisfazer necessidades
básicas, o mesmo supermercado que vende leite abaixo do preço de
custo, prática ilegal, para quem não saiba, não desiste da
acusação apresentada ao Ministério Público, sob o argumento que,
e passo a citar, «quem tem um negócio de portas abertas ao público,
como é o caso, está particularmente vulnerável ao pequeno furto e
não pode deixar de agir, sob pena de dar sinais errados à
comunidade».
O homem incorre numa pena
não superior a cinco anos de prisão, que será, ao que parece,
substituída por trabalho comunitário (ou pelo pagamento de 250€ -
o polvo está caro e o shampoo era dum professor qualquer com
assinatura pomposa e cabelo à Richard Gear). Mas há um problema...
ninguém sabe como notificar o arguido! E porquê...!? Não, não
fugiu para o Brasil. Não, não é primo do Vale e Azevedo...
simplesmente não tem morada! A última vez que foi visto ocupava um
prédio abandonado, mas pode muito bem ter sido estadia de apenas uma
noite, visto tratar-se nada mais nada menos que de um sem abrigo.
Sim, perceberam bem, o sinal correcto a dar à comunidade é encher
os tribunais com casos de pessoas na miséria que tentam roubar
comida... e shampoo.
Ao ouvir Gobern na sua
crónica lembrei-me dum senhor que vagueava muito aquela zona.
Obviamente não sei se é dele que se trata, mas como era habitual
ele ir tratar da sua higiene diária ali ao Lavadouro da Ervilha,
junto à Praça do Império, e como o pobre coitado foi apanhado com
um shampoo, talvez seja mesmo o Eremita da Ervilha, como eu o
costumava nomear de cada vez que me imaginava a escrever sobre tão
mítica figura local, detentora das mais variadas e tresloucadas
lendas urbanas – havia quem dissesse que ele era podre de rico, mas
queria viver na rua. Haviam os mais românticos que apontavam para
desgosto de amor... eu sempre preferi não saber a verdade, dava-lhe
um certo estatuto aqui no meu imaginário.
Cheguei a dar-lhe algumas
moedas provenientes das gorjetas angariadas nas corridas-margaritas,
precisamente no parque de estacionamento em frente a este Pingo Doce,
numa ou outra odisseia de troce-destroce, daí achar que pode mesmo
tratar-se do Eremita da Ervilha. Seja como for, sendo ele ou não,
dá-me quase um desejo que consigam notificar o homem. E que não
substituam a pena por trabalho comunitário (a menos que seja numa
caixa do Pingo Doce...). É que se prenderem o Eremita durante uns
tempos fica o prémio de consolação de saber que parte da TSU do
grupo Jerónimo Martins será aplicada para dar um tecto e refeições
quentes e diárias ao sem abrigo. É possível que o Lavadouro da
Ervilha seja mais aprazível que os balneários de Custóias, mas
pelo menos não terá que roubar shampoo durante uns tempos.